sábado, 30 de outubro de 2010

Maradona nasceu há 50 anos (e os médicos gritaram golo)



Por Sérgio Pereira e Pedro Jorge da Cunha

«Quando se atira a bola a um bebé, o reflexo natural dele é agarrá-la com as duas mãos. O meu filho chutava-a com o pé esquerdo.»

A frase pertence a Dona Totta, mãe de Maradona. Nela cabe toda a perfeição da mais pura definição do génio que nasceu para jogar à bola

Nasceu a 30 de Outubro de 1960, pelas 7.15 da manhã, na Policlínica Evita, em Lanús (Buenos Aires). Na Argentina brinca-se que quando Maradona nasceu, os médicos gritaram golo.

Se não gritaram, deviam ter gritado.

Ora como meio século é uma data que merece ser celebrada em grande, o Maisfutebol convida o leitor a uma viagem sem retorno: uma viagem por todas as histórias e vídeos de Maradona, com depoimentos de gente dentro, gente que viveu com o génio.

No primeiro bloco vai viajar desde o nascimento até ao dia em que saiu para o Barcelona. Vai ler os depoimentos do irmão Raul e do filho Maradona Jr., vai recuar até Villa Fiorito com um amigo de infância, vai vestir a camisola do Cebollitas ao lado de um antigo colega.

Vai estar com o treinador Juan Carlos Montes quando o chamou ao plantel principal do Argentino Juniors e vai ser Rúben Giacobetti a cruzar a linha lateral para ser substituído por Maradona na estreia como sénior.

Vai perceber com Ricardo Bochini o que é ser o ídolo do ídolo de milhões, vai estar com Mario Kempes a recordar um almoço da concórdia entre os dois maiores dez do futebol argentino, vai ser Batista e saber o que é ser agredido por Maradona num Mundial.

Vai juntar-se a nós e gritar «Maradó, Maradó».

Mas porque este dia não é só de Maradona, é de todos nós, que amamos o futebol, tem de fazer parte da viagem: envie vídeos, envie textos, deixe-nos a sua homenagem. Venha enfim celebrar o génio.

É fácil: imagine que é Maradona e tem uma bola nos pés.

Maradona, 50 anos: as noites em que Raul adormecia a olhar para o irmão

Por Pedro Jorge da Cunha

«O meu irmão é um fenómeno. Nunca hei-de chegar ao nível dele. É um marciano a jogar à bola.»

Hugo Maradona, 06/09/1979

Aos nove anos, o irmão mais novo do Pelusa acordava todos os dias a desejar o impossível. Desejava ser tocado pela genialidade de Diego. Queria roçar na bola com a mesma classe, dar milhares de toques seguidos, ser um ídolo de milhões.

Aos nove anos, Hugo sabia também que os seus desejos jamais se tornariam reais. Só havia lugar para um marciano na família e o papel de alienígena já estava tomado por El Pibe. Hugo tornar-se-ia profissional de futebol, é verdade, embora nunca tenha descolado os pés da terra.

Ainda jogou em Itália, até defrontou Diego na Serie A com a camisola do Ascoli, mas só no Japão conseguiu ser especial. Hoje em dia, Hugo está radicado no EUA e tem uma padaria na cidade de Greenacres (Florida). Especializou-se na elaboração de empanadas e tortillas. Mais terráqueo é impossível. Talvez por isso tenha recusado participar nesta reportagem.

Raul Lalo é um ano mais velho do que Hugo. Colecciona até hoje jornais e revistas que têm Diego na capa. Chegou a fazer um jogo na equipa principal do Boca Juniors, antes de se perder em campeonatos menores.

Ao Maisfutebol, Lalo confessa ter sido «difícil» lidar com o apelido Maradona apenas até à adolescência. «Depois, o prazer de ter o irmão que tenho serviu para ultrapassar isso. Fui perdendo os meus sonhos e vivendo os dele. Era injusto ser sempre alvo de comparações, mas percebo a ânsia das pessoas em encontrar um génio mais.»

«Como o meu irmão só o Pelé»

Raul adormecia a olhar para Diego. Fechava os olhos e sonhava em ser como o irmão. A pouco e pouco os sonhos desapareceram. Lalo percebeu que não era uma questão de aplicação, de paixão, ou trabalho. «Não, aquilo é um dom. Eu via o que ele fazia no nosso quartinho. Em dois metros quadrados fintava-nos como queria. Como ele só o Pelé. Mais ninguém.»

De quando em vez a Villa Fiorito parava para ver o filho varão de Don Diego. Raul não perdia um jogo do Pelusa. «Era uma festa, uma obra-prima. E ninguém tinha de pagar bilhete. A minha mãe é que andava sempre preocupada, coitada.»

Os anos passaram, Diego tornou-se D10S e Lalo assistiu a tudo da primeira fila. Ainda recentemente, fez questão de ir até à África do Sul com o filho Tiago. «É um grande irmão. Ajuda-nos com tudo. Uma vez ligou-me de manhã a perguntar-me se queria ir em vez dele ao Japão, fazer um anúncio publicitário. Explicou-me que o importante era estar lá alguém que se chamasse Maradona.»

Raul passa os dias a descobrir jovens talentos. Peneira o filão argentino em busca daquilo que nunca teve: o dom de ser especial.

«Adorava estar mais tempo com o meu pai»

Menos harmoniosa é a relação entre Diego Maradona e o filho bastardo. Maradona Júnior joga em Itália, agora no Forio D¿Ischia, e continua longe do pai. Em entrevista ao Maisfutebol, realizada em Fevereiro, falou sobre as agruras de ser descendente de D10S.

Agora, novamente ao nosso jornal, envia os parabéns possíveis. «Fico feliz que esteja bem. Adorava estar mais tempo com ele. A vida não o permite. Vibro com as alegrias dele e sofro com as tristezas. O passado está perdoado. Não quero envergonhar o nome Maradona. É demasiado importante.»

Maradona, 50 anos: Villa Fiorito enchia-se de gente para desafiar Pelusa

Por Sérgio Pereira

Villa Fiorito era um daqueles bairros: cheio de espaço, casas pobres e gente humilde. Onde os pais trabalhavam de sol a sol e as mães cuidavam dos filhos. Dona Tota teve sete e Diego era o quinto. Eram dias difíceis. D. Maradona, o pai, levantava-se às três da manhã e regressava a casa às sete da tarde.

Trabalhava numa empresa de transformação de fertilizantes e fazia horas extraordinárias para todos os dias colocar pão em casa. «Éramos muito pobres», conta Jorge Carrizo ao Maisfutebol. Jorge era vizinho de Diego, partilhava os descampados e os sonhos. «Vivíamos a cinco casas de distância um do outro.»

Os tempos livres eram passados a jogar à bola. «Havia quinze campos, na altura. Agora só há um». Villa Fiorito já não é Villa Fiorito. Jorge Carrizo continua a viver no bairro, mas está ansioso por sair. «É zona vermelha de Buenos Aires. Se precisares de telefone ou cabo, nenhuma empresa vem cá colocá-lo.»

O bairro está cercado por drogados e marginais. «Até a avó de Diego assaltaram. Depois a senhora saiu daqui», conta. «Já perdi a conta às vezes que me assaltaram. As ruas estão cheias de miúdos a roubar e a bater. Vê-los a drogar-se e não podes dizer nada, se não batem-te. Estou à espera da reforma para sair daqui.»

Os torneios em Villa Fiorito...

Já ninguém joga à bola na rua. O campo onde Maradona aprendeu a jogar futebol, aliás, foi destruído. «Está cheio de barracas, agora. Nem consigo passar por lá que começo a chorar», diz Jorge. Tem mais três anos do que Diego e fala com entusiasmo do amigo. «Ia buscá-lo a casa e passávamos os dias a jogar.»

Eram outros tempos, com outras prioridades. «Havia torneios de bairro. Só queríamos competir.» Um dia ouviram falar num torneio aberto num bairro vizinho. «Um torneio aberto é para toda a gente: vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos.» Jorge inscreveu-se com Maradona, o irmão Goyo, o Montañita e um guarda-redes.

«Eu tinha catorze anos, eles teriam dez ou onze. Quando olharam para o Maradona e o Montañita não queriam aceitar a equipa.» Arranja outros, disseram-lhe. «Disse-lhes que eram aqueles». São crianças, devolveram. Arranja outros. «Ou aceitavam aquela equipa ou não aceitavam. Aceitaram. Imagine? Fomos campeões.»

... o fim de Pelusa, que «não era nenhum maricas»

Na final Maradona marcou três golos, conta. «Era um fenómeno. Era muito pequeno, mas ninguém lhe tirava a bola. Já tinha um talento distinto. Ele não agarrava a bola, acariciava-a.» Homens de barba e bigode pediam então a Jorge para levar o Pelusa. «Entrávamos em todos os torneios. Todos nos queriam.»

Até um dia, claro. «O Maradona já jogava nos Cebollitas e o pai dele não gostava que jogasse no bairro. Sabe que o futebol no bairro é diferente. Era duro e tinha de se meter o pé. O Maradona não era um maricas, era um miúdo bravo. Tão bravo que um dia levou uma patada, lesionou-se e o pai nunca mais o deixou voltar.»

Foi o fim do futebol ao lado de Maradona: Jorge nunca jogou fora do bairro. «Não tinha o talento deles», admite. Maradona acima de todos, claro. «Mas quando tínhamos cinco ou seis anos, havia um miúdo chamado Sopatota... incrível. Depois o Pelusa tornou-se melhor. Com oito anos nem homens feitos lhe tiravam a bola.»

Maradona, 50 anos: D10S tem um ídolo e chama-se «Maestro» Bochini

Por Pedro Jorge da Cunha

A tágide de Diego Maradona chama-se Ricardo Bochini. Suprema inspiração de D10S, alvo da mais pura devoção da meninice do Pelusa. «Só tenho um ídolo. É o Bocha, o número dez do meu Independiente», vincou o imberbe Dieguito, numa das suas primeiras entrevistas.

O que é ser o ídolo do maior dos maiores? Como é impregnar de pueril inveja o futebol daquele que tudo tem? «É como se os Beatles amassem a música dos Los Piojos [banda rock da Argentina]. Não faz grande sentido para mim», desabafa Bochini, envergonhado, ao Maisfutebol.

Mas faz. Faz todo o sentido. Maradona era hincha do Independiente e Ricardo Bochini o grande símbolo do clube. Mais de 700 jogos, centenas de golos, classe a transbordar por todos os poros. A recompensa chegou em 1986.

«Sei que joguei seis minutos no Mundial do México porque o Maradona assim o exigiu», confessa. «Merecia ter ido ao Campeonato do Mundo de 1978 e não fui. Em 1982 lesionei-me à última da hora. Em 86 tinha 32 anos e as pernas cansadas. O Maradona convenceu o Carlos Bilardo a convocar-me.»

A mais bela das homenagens. Maradona resolveu o jogo frente à Bélgica [2-0, com golos do diez] e na fase de descompressão exigiu a entrada de Bochini. «Saiu o Burruchaga, outro craque. Pisei a relva e o Diego veio a correr para mim. Faça o favor Maestro, a bola é sua.»

Foi o único jogo oficial que fizeram juntos: seis minutos para a História.

1979, um certo jantar em Buenos Aires

Diego Maradona teve de esperar até 1979 para conhecer Ricardo Bochini. O encontro foi arranjado por Hugo Saggiorato, um amigo comum. «Sinto um grande orgulho nisto. O Hugo veio ter comigo e disse-me que o Maradona era meu fã e queria jantar comigo», recorda.

«Nessa altura ele já era reconhecidamente um fenómeno. Combinámos ir a um restaurante da moda em Buenos Aires. Cheguei primeiro, esperei, esperei e comecei a pensar que ele não vinha. Levantei-me e percebi tudo. O Diego estava à porta a dar autógrafos há mais de meia-hora.»

Maradona chegou à mesa e beijou a mão de Bochini. D10S também venera. «Falámos sobre futebol, sobre a minha carreira, sobre a vida difícil na Villa Fiorito. Percebi que o Dieguito tem um coração enorme, apaixonado, por vezes demasiado apaixonado.»

A cópia perfeita e um casamento «de loucos»

O melhor golo de sempre pode ser, afinal, uma cópia. Uma cópia perfeita e ampliada, é certo. Mas uma cópia. Antes de Maradona destroçar meia-Inglaterra no Mundial de 1986, já Ricardo Bochini fizera o mesmo ao Peñarol.

«São dois golos semelhantes. Na Libertadores de 1976 fintei seis ou sete uruguaios. Creio que arranquei ainda mais de trás do que o Diego», relembra Bochini, antes de finalizar a conversa com uma história deliciosa. Uma história de alguém que é ídolo do maior dos maiores.

«Fui ao casamento da filha de um dirigente do Independiente. A cerimónia foi numa quinta e puseram o altar numa zona relvada. Cheguei atrasado, sem chamar a atenção, mas o padre viu-me. Interrompeu o seu monólogo, pediu desculpa aos noivos e gritou: acaba de chegar o melhor jogador que vi em toda a minha vida. Um aplauso para o senhor Ricardo Bochini. Não sabia onde me meter. Foi de loucos.»

Música da claque do Independiente:

«Não se chama Maradona,
não é Di Stéfano nem Pelé.
É o Maestro Bochini, o melhor número 10»

Maradona, 50 anos: o Cebollitas e a história que quase não começava

Por Sérgio Pereira

Quando Goyo Carrizo foi fazer testes ao Cebollitas a resposta que recebeu foi em forma de pergunta: não tens outro lá no teu bairro como tu? «Tenho um melhor», respondeu Goyo. «O Pelusa». Tinham nascido com nove dias de diferença, frequentavam a mesma escola de Lomas de Zamora e eram amigos desde sempre.

Pela mão do amigo começa a mais bela história do futebol: Diego tinha dez anos. O Cebollitas ganhou títulos, bateu recordes e foi transformado em veículo de propaganda do regime peronista. Diziam que era um exemplo da boa educação desportiva da república argentina. «Éramos imbatíveis», conta Ricardo Lombardi.

«Era difícil encontrar um miúdo que não fosse craque». Acima de todos... Maradona. Sob a orientação de Diego, os Cebollitas estiveram 137 jogos sem perder. Só perderam uma vez, aliás. «Em Santiago Ballesteros, num pueblo chamado Pinto», conta Jorge Carrizo, o irmão de Goyo e amigo de Maradona.

Jorge ainda recorda as palavras de ambos à chegada da derrota. «Diziam que os adversários tinham bigode. É normal. Na província registavam-se as crianças quando às vezes já tinham quatro ou cinco anos», lembra ao Maisfutebol. Os Cebollitas perderam pela primeira vez e Maradona... chorou.

Mas esse foi um jogo que não esqueceu. «No final um senhor da aldeia convidou-os a comer em casa dele. O Pelusa estava a chorar e esse senhor disse-lhe: Não chores, que ainda vais ser o melhor do mundo». Maradona parou de chorar. «Ainda hoje conta essa história. Foi uma frase que o marcou para toda a vida.»

A primeira ovação aos 12 anos... no terreno do Boca Juniors

Os Cebollitas iam fazendo história. «Uma vez perdíamos 1-0 ao intervalo. A outra equipa já estava entusiasmada», conta Lombardi, ele que admite que integrava a parte mais fraca dos Cebollitas. «O treinador deixara Maradona e Goyo de fora. Entraram na segunda parte e marcaram seis golos em quinze minutos.»

A partir daí, fecharam a loja. «Chegavam em frente da baliza e rematavam para fora. Ninguém percebia. Eles no fim explicaram: estavam a tentar acertar numa vaca que havia num campo atrás da baliza. Tinham feito uma aposta para ver quem lhe acertava primeiro. Podiam ter feito quinze golos só na segunda parte.»

Carrizo descorre as memórias sem parar. Lembra de quando a televisão apareceu nos treinos. «O Maradona era um malabarista, fazia coisa incríveis com a bola. Ao intervalo dedicava-se a mostrar habilidades. Começou a espalhar-se a notícia de que havia um miúdo que era um fenómeno e até a televisão foi lá filmá-lo.»

Cumpria por essa altura doze anos. Mais ou menos a mesma idade que tinha quando recebeu a primeira grande ovação... no terreno do Boca Juniors. «Foi num jogo em que o treinador o ia tirar. De repente os adeptos do Boca começaram a gritar o nome dele e a pedir para o deixar ficar em campo. Ficou, claro.» Premonitório?

Uma história que esteve quase a não começar

A melhor parte desta história é que esteve quase a não começar: Diego recebeu dinheiro e permissão do pai para fazer o teste, apanhou dois autocarros e apresentou-se no local... que estava fechado: chovia muito e o campo estava impraticável. Maradona chorou. O pai não voltaria a dar-lhe dinheiro para a viagem.

Nessa altura surgiu Francis Cornejo. «Todos para a carrinha de Yayo», gritou. «Vamos fazer o teste a outro lado». Diego fez o teste e ficou, Francis tornou-se o homem mais importante na carreira. «Foi treinador, conselheiro e quase um pai. Dava-lhe dinheiro para comer, para o autocarro, para comprar botas.»

Francis morreu há um par de anos: sozinho, pobre e abandonado. «Fui sempre humilde, pobre e lírico. A Diego nunca pedi nada, só agradeci. Podia ter tocado a qualquer um, mas tocou-me a mim. Sinto-me pago só por tê-lo descoberto. Foi o filho que nunca tive, e posso morrer tranquilo», referiu Francis pouco antes de morrer.

Maradona, 50 anos: jogador do Regime, importante para a Pátria

Por Luís Pedro Ferreira

Diego Maradona ainda não tinha 16 anos quando um golpe de estado, a 24 de Março de 1976, tirou os «peronistas» do poder, na Argentina. O Processo de Reorganização Nacional governou pelo terror e jorrou sangue nas «calles» argentinas. Já antes, Maradona era visto pelos «peronistas» como um exemplo, com os Cebollitas a percorrerem a América do Sul. A política sempre influiu na vida de Maradona, desde a infância até ao Mundial-86.

Os Cebollitas estiveram 137 jogos sem perder, sempre com Diego como figura. Jogaram em toda a Argentina. Como exemplo do crescimento e influência desportiva do período «peronista», partiram em digressão, com jogos no Chile, na Bolívia e muitos outros destinos na América do Sul.

Amigo de infância, Jorge Carrizo recebia presentes de Maradona, como conta ao Maisfutebol: «Diego trazia-me garrafas de whiskey, daquelas pequenas, que se davam nos aviões», revela. El Pibe aproveitava de todas as maneiras o modo de transporte que o Estado lhe proporcionava, algo que, naquela altura, estava apenas ao alcance dos ricos. Anos depois, já no Argentino Juniors, um outro Governo iria ter maior influência na vida de D10S.

«O jogador não pode sair, a pátria precisa dele»

A história é contada por Josep Maria Minguella. O empresário catalão levou grandes futebolistas para o Barcelona, desde Romário, Hagi até Messi. Mas o primeiro de todos foi Maradona. Minguella relata numa autobiografia que estava à procura de um extremo direito para o Burgos. O alvo era Jorge Lopez, do Argentino Juniors. Por sorte, assistiu à estreia de Diego. Pouco depois, estava em contacto com o presidente do clube e fez o negócio por cem mil dólares! O Barcelona recusou-se a pagar tanto dinheiro por um jovem de 16 anos.

Em 1980, em pleno «Processo», o Barça volta atrás. Minguella negoceia El Pibe. O acordo foi rápido, a aparição do Regime também. Julio Grondona, presidente da federação argentina, já o era naquele ano e informou que havia um problema com a transferência.

O almirante Carlos Lacoste fora chefe da organização do Mundial-78, na Argentina e comunicou a Minguella: «O jogador não pode sair porque a pátria precisa dele. Se quer fazer negócios neste país, podemos facilitar noutros casos, mas esqueça este. Até ao Espanha-82, Maradona não sai.»

A vida de Maradona era influenciada ao mais alto nível político, até porque um dos generais mais sangrentos no período da ditadura tinha uma forte ligação ao Argentino Juniors. Carlos Guillermo «Pajarito» Suárez Mason foi julgado por crimes contra a Humanidade e cumpriu prisão domiciliária. Voltou à cadeia porque decidiu celebrar os 80 anos no recinto do Argentino Juniors, em 2004 já chamado «Estádio Diego Armando Maradona». Diz-se que foi ele quem proibiu a saída do Pelusa para o Barça, tal como, conta-se, Salazar dissera não à saída de Eusébio, do Benfica para Itália.

Apenas em Maio de 1982, o Barcelona, e Minguella, conseguem contratar Maradona, que estava concentrado com a selecção argentina em Alicante, nas vésperas do Mundial de Espanha. Quatro anos depois, a política voltaria a atravessar-se no caminho.

A Guerra e o Mundial-86

Durante o «Processo», a Argentina ocupou as Malvinas e entrou em guerra com a Inglaterra. As mães argentinas choravam milhares de desaparecidos, torturados e assassinados pelas juntas militares. Agora, chorava também os mortos na guerra com Inglaterra, uma guerra que no Mundial-86 tornou ainda mais importante o confronto entre argentinos e ingleses.

Maradona resolveu o encontro. Primeiro com a «Mão de Deus», depois com um golo que derrubou seis ingleses de uma vez só. Naquele 22 de Junho de 1986, Maradona deu algum conforto aos que perderam filhos na guerra. O 24 de Março é o «Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia», para que sejam lembradas as lágrimas de todas as mães argentinas. Os golos de Maradona à Inglaterra também não nos deixam esquecer...

Maradona, 50 anos: o Argentino Juniors, e um treinador desconfiado

Por Sérgio Pereira

Juan Carlos Montes estava farto da mesma história: toda a gente lhe dizia que tinha de ir ver um miúdo de 15 anos que jogava nas camadas jovens. Montes era o treinador da equipa principal. «O Argentino Juniors estava em risco de descer e eu pensava que não era um miúdo de quinze anos que me ia safar», conta.

Enganou-se, admite agora. «Enganei-me redondamente.» Quando o Argentino Juniors garantiu a permanência, o treinador mandou então vir o tal miúdo de 15 anos que jogava na equipa da sétima divisão. Chamava... Maradona. «Era um miúdo baixinho, delgado, fiquei a olhar para ele desconfiado», conta ao Maisfutebol.

«Ao primeiro toque na bola conquistou-me imediatamente. Era um miúdo distinto, com um toque de bola delicado.» Maradona nunca mais saiu da equipa principal e o Argentinos Juniors nunca mais foi o mesmo. De equipa que lutava para não descer, o clube passou a lutar pelo título. Chegou aliás a ser vice-campeão.

Provavelmente só Montes não conhecia a reputação de Maradona. «É curioso que todos os grandes treinadores me diziam: avisa-me quando lançares o miúdo. Quando o estreei com o Talleres de Córdoba era uma quarta-feira e vieram todos: o seleccionador Menotti, o Lorenzo, do Boca, enfim, vários.»

O então treinador de Maradona desculpa-se. «Há 34 anos não era como agora, que todos os torneios juvenis passam na televisão. Os planteis eram maiores e ele jogava na sétima divisão», brinca , ele que ainda hoje ter de falar desse episódio e se orgulha de ter lançado também Jorge Valdano, por exemplo.

Mas há outra história curiosa à volta da chamada de Maradona ao plantel principal. «Lembro-me de dizer para avisarem o miúdo que no dia seguinte ia treinar connosco. Ele aparece-me à frente com uma camisola do Newells Old Boys». Juan Carlos Montes sorri. «O Newells tinha sido o meu clube no ano anterior.»

Olhou para Maradona de cima e com cara séria atirou: «Achas que é assim que me vais comprar?». A resposta deixou-o intrigado. «O miúdo sorriu e disse que não. Qualquer outro tinha dado logo uma resposta altiva. Ele não. Era um miúdo tímido e sossegado, fora de campo. Dentro dele era o contrário, era uma fera.»